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por Paiva

Aug 17 • 3 min read

o preço invisível da sua atenção


a gente é o que repete... no celular?

Ontem, no ponto de ônibus, um garoto segurava o celular tão perto do rosto que parecia que a tela ia atravessar a pele.

Os olhos fixos. A boca entreaberta. Um avatar suspenso no meio da vida real.

E eu fiquei me perguntando… não o que ele estava vendo.

Mas quem ele estava se tornando.

Não no sentido romântico, simbólico. Não no clichê do “quem ele é por dentro”.

Mas no sentido cru de David Mamet: a gente é o que repete.

O resto é só narração.

de "dom escondido" à caráter


Mamet dizia que não existe “essência de personagem”.

Não tem esse fundo secreto da alma.

O que existe é ação habitual.
O que você faz quando ninguém mais repara.
O que continua repetindo até virar rastro.

E, de repente, isso me pareceu uma chave esquecida no bolso.

Pensei em Chris Rock.

Menino negro no Brooklyn dos anos 70, cercado por gangues, violência, convites fáceis para a queda.

Perguntaram como ele “escapou”.

Ele respondeu:

"Não é sobre escapar. É sobre follow-up."

Pra entrar numa gangue você precisa aparecer no ponto de encontro.

Repetir a roupa, o gesto, o roubo. Seguir o ritual até que o ritual te engula.

Ele não seguiu. Mas na comédia, sim.

Noite após noite. Open mic após open mic. Rascunhando piadas em guardanapos. Assistindo talk shows como quem estuda religião.

Não havia “dom escondido”. Havia repetição. E a repetição virou caráter.

quando um nome vira acusação


Louisa May Alcott é um exemplo disso.

Ela enchia seus livros de pessoas reais, mas trocava os nomes.

Até que, sem querer, usou um de verdade: Ariande Blish.

A falta de sorte é que caiu em cima de uma personagem antipática.

E logo chegou uma carta indignada de uma pessoa chamada... Ariande Blish.

Louisa respondeu:

“A melhor defesa é a vida. O que a gente faz habitualmente.”

Ela não tinha o hábito de ridicularizar conhecidos. Logo, um deslize não podia defini-la.

E eu fiquei pensando… que frase difícil de sustentar hoje, na era do print eterno, do linchamento em câmera lenta.

Mas ao mesmo tempo… tão verdadeira.

No fim, o que pesa é o padrão.

Graham Duncan chama isso de o elefante na sala.

Quando você avalia alguém, não adianta ouvir o que a pessoa diz de si mesma.

É preciso olhar para o que se repete.

Ligar para 3, 4 pessoas, e ouvir em contextos diferentes a mesma descrição:

  • “ele sempre chega atrasado”
  • “ela sempre prepara tudo com detalhe”
  • “ele sempre some quando o problema aperta”


O hábito denuncia mais que qualquer rótulo. Mais que qualquer narrativa.

Até em mercados mais impessoais isso conta.

Jensen Huang, fundador da Nvidia, fez um dos piores pitches da história do Vale do Silício.

Don Valentine, o investidor, admitiu sem dó:

“Não entendi nada. Foi horrível.”

E mesmo assim, investiu. Por quê será?

Não pelo discurso. Mas pelo histórico. Pelos hábitos que Huang já carregava como cicatriz.

Reputação não nasce de uma apresentação brilhante. Nasce do que você repetiu até virar marca.

scroll, click, like...


E então volto ao garoto do ponto de ônibus. À cabeça curvada. Ao reflexo azul nos olhos.

Ele não parecia só assistir a vídeos. Parecia estar sendo treinado.

E não só ele.

Uma geração inteira está sendo moldada não pelo que acredita. Mas pelo que repete sem perceber.

Uma liturgia silenciosa. Sem altar, mas com milhões de fiéis.

Winifred Gallagher escreveu:

“A vida é a soma daquilo em que você presta atenção”.

E quando penso nos jovens de hoje, não vejo apenas tempo perdido.

Vejo caráter em construção.

Cada notificação é um ensaio.
Cada feed é um curso de formação.
Cada hábito, uma pequena coreografia que, repetida mil vezes, se torna identidade.

construção x deformação


A economia da atenção não vende só minutos. Vende caráter. Vende quem você vai ser.

E aqui, inevitavelmente, eu me olho no espelho. Porque não é só sobre “os jovens de hoje”.

Eu também acordo com a mão no celular. Também sinto o corpo inclinar, como se tivesse um ímã escondido na tela.

Também treino hábitos sem perceber.

E me pergunto:

"O que em mim é construção? E o que é deformação?"

No fim, não importa tanto o que eu digo ser. Nem o que eu sonho ser.

Se amanhã alguém quiser saber quem eu sou, basta olhar para o que sigo repetindo.

Dia após dia. Em silêncio. Sem testemunha. Sem ninguém pra dar like, comentar ou compartilhar.

Esse e-mail termina aqui. O resto, é seu.

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