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por Paiva

Apr 13 • 3 min read

⌛️ projetar > criar rotina > coar café com 10 anos de preparo


um dia só

Desempregado há seis meses no Canadá, me vejo nesse lugar estranho entre atualizar o Linkedin e desenhar um futuro criativo com as mãos.

Estou nesse embate. Procurar trabalho, planejar uma vida com mais tato, resolver a conta do mês, imaginar o que quero viver daqui a dez anos...

No meio dessa pequena crise de identidade, me veio um exercício.

Não uma lista de metas. Mas um dia.

Descrever um dia comum. Detalhado. Real. A hora que acordo. A textura do lençol. O cheiro do café. Quem tá do meu lado.

E se imaginar esse dia, esse único dia, for a forma mais sincera de descobrir o que ainda falta agora, hoje?

A minha visão de 10 anos, deixo aqui como quem entrega um pergaminho sagrado escrito à mão.

Enquanto o mundo corre, parei pra escrever um dia. Um só. Com cheiro, tato, silêncio e intenção.

No fim, deixo o papel e a caneta na sua mão.

silêncio matinal

Acordo antes do barulho. A casa ainda respira em silêncio. A luz entra pelas janelas largas, filtradas por ripas de madeira clara.

O quarto é quente, aconchegante, com cara de refúgio. Parece Japão. Mas um Japão que se misturou com o Ocidente e resolveu ficar.

afeto enraizado

Twiggy está acordada. Ela se espreguiça aos meus pés. Boston Terrier teimosa, companheira desde sempre.

Já com seus 13 anos de amor doce, ronco salgado, e orelhas.

Carrega o nome que minha avó deu à cachorra dela nos anos 70, um nome que atravessou gerações, cheio de chamego antigo.


vida compartilhada

Minha esposa ainda dorme. Os dois pequenos também. Um menino e uma menina. Dois mundos que nasceram da gente, e que agora crescem com o nosso cuidado.

Vou pra cozinha, faço café coado no filtro de papel, com atenção quase cerimonial.

Outros dias, uso minha máquina de espresso manual. Cada passo pensado, cada xícara com intenção.

Café, pra mim, nunca foi só cafeína. É ritmo.

A casa tem cheiro de madeira, som de passos leves e vista pra algum tipo de verde. É uma townhouse discreta, casa talvez, funcional, com alma. Móveis simples, mas bem feitos.

Nada de exagero, tudo com propósito. Parece um estúdio. Quase se confunde com meu escritório.

trabalho vivo

Mas meu lugar de trabalho é estendido para alguns blocos de distância de onde vivemos.

Meu estúdio criativo que expressa o digital, com alma analógica, fica há 15 minutos de bicicleta.

É de lá que conduzo projetos com sentido, com estética, com verdade.

Desenho identidade, ideias que tocam, cartas que alimentam, vídeos que preenchem.

Trabalho com gente que acredita em mais do que só performance. Criamos com tato.

tempo criativo

Sigo com meu canal no Youtube, agora mais maduro. Menos sobre ferramentas, mais sobre sensações.

Produtividade virou só pano de fundo pra falar de tempo, corpo e criação.

Ainda escrevo cartas. Ainda recebo cartas. Ainda respondo.

Na mesa de trabalho, sempre um caderno aberto, um rascunho novo, um vídeo em edição, um projeto em andamento.

Crio o que me faz falta. Divido o que me faria bem ouvir.

E tento manter distância do barulho, aquele que vem das telas, dos feeds, das comparações disfarçadas de inspiração.

refúgio sonoro

No fim da tarde, pego a bicicleta e pedalo até o nosso coffee-bar.

Madeira escura, silêncio confortável, luz baixa entrando por frestas bem pensadas. Um lugar desenhado por alguém que entende o tempo.

Meio café, meio jazz embutido numa biblioteca.

Discos de vinil, livros de design, prateleiras que parecem cartas não enviadas.

Ali, cada xícara é uma cerimônia discreta.

Chegam pela música ou pelo café, ficam pelos detalhes: conversas em voz baixa. Coltrane no fundo. João Gilberto entre copos.

Volto pra casa com cheiro de madeira, som de vinil na memória e alguma ideia nova no bolso.

presença caseira

Á tarde pra noite, dou atenção. À Marcella. Aos filhos. À casa. À mim.

Caminho com a Twiggy. Escrevo no meu diário. Às vezes, só observo o tempo passar pelas janelas grandes da sala.

À noite, cozinho com minha esposa. Rimos de coisas pequenas. Falamos da vida como quem sabe que construiu algo raro.

Os pequenos dormem. A casa respira de novo. Antes de dormir, anoto uma frase. Não por hábito, por reverência.

Hoje escrevi: "há 10 anos, isso era só visão. hoje é casa"

visão sustentada

E talvez o mais importante: essa visão não caiu do céu. Ela foi cultivada. Todos os dias, contra o impulso de abrir mais uma aba.

Contra o vício de preencher cada silêncio. Contra o medo de parar.

Isso é o que projeto pra daqui a 10 anos. Vou ter 45. E hoje, aos 35, desempregado há 6 meses, respiro fundo. Reflito minha trajetória.

Me pergunta, com seriedade e esperança, qual o próximo passo pra chegar onde sei que posso.

A questão já não é mais o que fazer, mas:

"como viver como quem já sou?"

Talvez escrever essa visão seja, pra mim, um jeito de resistir ao automatismo. De lembrar que o futuro não se constrói com urgência.

Mas com atenção.

E você, se projetasse daqui a 10 anos, qual distração teria sumido?

Qual hábito teria virado ritual? Qual vida você estaria vivendo com as duas mãos?

Às vezes, o exercício mais produtivo é imaginar. Não como fuga, mas como direção.

Temos casa, riso, e planos que cabem em palavras faladas no café da manhã.

E assim, desenho meus dias com mais curiosidade do que rigidez.

@paiva // @thejppaiva // paiva.me

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