a máquina pensa rápido. e você?
A primeira coisa que ouvi foi o barulho da bomba.
Depois o cheiro.
Aquela fumaça densa que sai do espresso fresco e parece dizer:
"agora não é hora de pensar em outra coisa"
Mas minha cabeça estava em três lugares ao memso tempo.
Meu corpo na cozinha.
Meu olho na tela.
Minha cabeça...bom, essa você já sabe.
A máquina era a Breville. O grão, recém-moído. A dose, exata. A intenção... nem tanto.
E mesmo assim, a xícara ficou boa. Redonda. Quente. Me olhando como quem diz:
"nem tudo precisa ser perfeito pra ser verdade."
o café saiu certo. eu, nem tanto
Tenho pensado muito nisso: a presença parcial que carregamos nos últimos tempos.
E o quanto até as boas ferramentas (sim, ChatGPT) podem se tornar um tipo novo de distração.
Não por excesso de ruído, como é o caso das redes sociais. Mas por ausência de atrito.
a IA não rouba com barulho
Ela leva com gentileza.
O Andy Anderson escreveu que o preparo do café é, acima de tudo, uma prática de atenção.
Um ritual de presença.
Um gesto de cuidado invisível
que ninguém vê, mas você sente.
E eu concordo.
Mas também acredito numa outra coisa: às vezes, o mundo muda. E com ele, mudam nossos rituais.
não é o fim do ritual
É o começo de outro.
Antes, escrever era sentar com um caderno e caneta na mão.
Agora, muitas vezes, é digitar com o GPT piscando ao lado, esperando o próximo comando. Mas veja, isso não é uma tragédia.
Pode ser só uma outra forma de começar. Uma espécie de co-autoria silenciosa, onde você ainda pode (e deve) escolher as palavras finais.
É como uma dança: você pode deixar a IA sugerir os primeiros passos. Mas precisa ser você a escolher o ritmo.
A cadência e o fim da música.
Porque atenção, no fundo, não é o oposto da tecnologia. É o oposto da pressa.
E o que nos falta não é foco, é relação.
Com o tempo. Com o gesto. Com o processo criativo que, mesmo assistido, ainda precisa do nosso toque manual.
ainda dá pra escrever com alma
Mesmo com ajuda.
Esses dias escrevi um texto inteiro sem abrir o ChatGPT. Foi mais lento. Mais falho.
Ma(i)s bonito.
Lembrei de como era rasurar um parágrafo.
Fala sério: quando foi a vez mais recente que você ouviu essa palavra: rasurar?
Mas olha que delícia.
Voltar numa frase. Escolher um adjetivo não porque ele é certo, mas porque ele soa certo. Ele encaixa melhor.
Foi como ouvir de novo o barulho da bomba da Breville. Sentir o calor da xícara. Lembrar que a criação é, antes de tudo, um corpo no tempo presente.
E quando você toma uma decisão, mesmo que seja a troca de um adjetivo por outro, sem o medo do julgamento, sem a pressão por agradar, sem titubear...
você se sente presente.
clareza sem pressa
Não quero romantizar o passado. Nem demonizar o presente.
Só quero lembrar.
A mim, a você, que ainda dá pra fazer café com atenção. E ainda dá pra escrever com alma, mesmo que com ajuda.
Porque a atenção não é exclusividade dos analógicos. Ela é escolha.
Uma decisão silenciosa, quase ritualística, de estar inteiro em algo pequeno.
E que boa notícia é essa: ainda temos escolha. Ainda sabemos voltar.
Às vezes por um café queimado,
às vezes por uma frase que não se encaixa,
às vezes por saudade de pensar com mais corpo e menos máquina.
Hoje o espresso saiu melhor. Não porque a dose mudou,
mas porque eu mudei de lugar dentro da manhã.
Fechei o celular, olhei o vapor e escrevi um parágrafo que era só meu.
Ali, senti algo que há tempos eu não sentia: clareza sem pressa.
Esse e-mail termina aqui.
O resto, é seu. Vai um café?